(IX)
"Atrás daquela janela, virada para o mar, está o meu amigo e irmão".
Não me lembro se os versos da canção eram exactamente estes, ou se misturei letras escritas em lúgubres e tristes tempos, que atravessaram a nossa infância, adolescência e até o início da idade adulta e que nos deixaram marcas profundas que o tempo nunca apagará, por muitas alegrias e vitórias tivessem vindo depois. Mas as injustiças, as violências e a opressão nunca se esquecem. Mas não sou revanchista, como a burguesia em geral o é. Não quero é que esses horríveis tempos, do fascismo salazarista, se repitam!
Não! Não são pensamentos pessimistas de "o homem que via passar os aviões", por trás duma outra janela. Por que aqui o motivo é outro. É a tentativa de recuperar a saúde, numa instituição que, por aqui vir muitas vezes, aprendi a respeitar e até de certa maneira a amar, pelo carinho com que tenho sido nela tratado. Isso também o tempo nunca apagará.
Mas a janela fez-me lembrar ainda outras janelas e situações, que outros, muito melhor que eu, conseguiram transmitir através das suas obras. Pensei, enquanto a madrugada ia chegando, nalgumas delas.
Na "Rear Window" (que alguém se lembrou de chamar, um pouco idiotamente, indiscreta) que o mago Alfred Hitchcock, mago da arte das imagens, um dia inventou.
E noutro mago que tem conseguido pôr com mestria nos seus filmes algumas ideias comuns a quase todos os cinéfilos. Woody Allen, no seu apaixonante e delicioso, apesar do tema, "Manhattan Murder Mistery" (O Misterioso Assassínio em Manhattan), onde também é a observação, tal como em "Rear Window", que conta.
E o pensamento salta para outra obra-prima, de outro mestre incontestado, Michelangelo Antonioni, em "Blow-Up", que ainda nos fascina, talvez porque a câmara escura para nós ainda não foi esquecida. Aí é através do tratamento da imagem, da sua ampliação até ao limite, que o fotógrafo procura (em vão?) descobrir a verdade.
Hoje, num tempo em que o grande poder económico tudo manipula, mas principalmente com imagens que difunde através dos Media, falsas ou manipuladas, "Blow-Up" pode parecer até ingénuo.
E os jornalistas e os fotógrafos que o poder económico contrata e explora, a tudo se sujeitam e deixam-se manipular através do medo de represálias se ousarem escrever ou mostrar verdade.
Honra seja feita, no entanto, aos que ainda têm coragem e conseguem manter a dignidade. Mas não são os que o poder incensa. E lembrei-me, entre muitos outros, do saudoso e recentemente desaparecido, grande escritor também, Baptista-Bastos, que afastado dos jornais onde sempre escreveu (o último foi o DN, onde o despediram sumariamente), teve que se refugiar num miserável pasquim (CM) enquanto a saúde lhe permitiu escrever.
(X)
Na primeira vez que aqui estive, em 2006, as enfermarias eram maiores, não havia televisões, as casas de banho eram duas por piso, enormes, ao fundo do corredor.
Contaram-me pelo menos duas pessoas, que esteve aqui internado, talvez no 6º piso onde também estive, o famoso pintor, escritor e poeta surrealista, Mário Cesarini, que tanto foi o tempo que esteve internado que resolveu pintar nos azulejos de uma das casas de banho. O resultado, como era de esperar, foi magnífico.
Tão bom que quando o edifício principal onde estou foi para obras os responsáveis logo pensaram em preservar a obra de Cesarini, entretanto aqui mesmo falecido. O que segundo me contaram não foi possível. Os azulejos foram destruídos por alguém que desconhecia o que se passava por se terem esquecido de o avisar, e acabou por destruir a escopro e martelo as obras de arte. Terão ficado, certamente fotografias e talvez vídeos.
A Arte é, muitas vezes e infelizmente, efémera. Faz parte da sua própria condição. Quem não pôde ver nunca mais o poderá fazer.
Por isso o que vi, ou ouvi, faz parte do meu património, o imaterial, que é o que mais respeito. Esses momentos únicos e irrepetíveis, nos palcos principalmente, mas também nas salas de exposição. E não será isso o mais importante da nossa vida, juntamente com o que conseguimos, nós próprios, fazer de muito bom?